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Instituto de Terras do Piauí - INTERPI
Da terra ao reconhecimento
07/10/2021 - 10:22  
  
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Entrega de Titulo Coletivo na com quilombola Queimada Grande
Durante os século XVII e XVIII, no Brasil, a população negra encontrou maneiras de fugir do regime de trabalho forçado ao qual era submetida. Em pontos estratégicos e de difícil acesso para os “capitães do mato”, escravos em fuga encontravam refúgio e abrigo – esses locais se tornaram, ao longo dos anos, em comunidades de resistência, com forte ligação com a história e trajetória de africanos e afrodescendentes escravizados: os quilombo preservam costumes e cultura trazidos por seus antepassados.

Atualmente, estima-se que mais de 200 quilombos existem somente no Piauí. Entre eles, a Comunidade Quilombola dos Macacos, próximo à São Miguel do Tapuio (230 km de Teresina).  No local moram hoje mais de 100 pessoas, distribuídas em pelo menos 30 famílias – elas  sobrevivem da agricultura e criação de animais para subsistência. Agora, durante os meses de setembro, outubro e novembro, a comunidade espera as poucas chuvas do período para as colheitas de milho e arroz. 

A história do Quilombo dos Macacos possui mais de duzentos anos, mas somente nos últimos 27, a comunidade vem se organizando junto aos órgãos estatais e jurídicos em prol de políticas públicas para saúde, educação e segurança – mas, principalmente, na luta pelo Título de Propriedade da Terra. “Esse documento é uma comprovação de que nós e nossos antepassados existimos”, ressalta Maria Francisca Vieira, líder da comunidade. “É uma forma de comprovar que temos o direito de estar aqui pela resistência e luta daqueles antes de nós”, acrescenta. Assim como a Quilombola dos Macacos, outras dezenas de comunidades esperam os títulos há mais de 20 anos. 

A realidade vivida pelo Quilombo dos Macacos se estende também às comunidades tradicionais – como quebradeiras de coco, pescadores e vaqueiros – e povos indígenas que ainda vivem sem titulação. Desde agosto deste ano, o Instituto de Terras do Piauí (Interpi) vem realizando uma série de entregas de títulos coletivos e individuais nos assentamentos e comunidades espalhadas pelo Piauí. Até o momento, assentamentos e quilombos nos municípios de José de Freitas, Barras, Isaías Coelho, Piripiri, Esperantina e Bom Jesus já receberam suas documentações e reconhecimentos da terra onde vivem. 

COMUNIDADES QUILOMBOLAS MARINHEIRO RECEBE TÍTULO DE PROPRIEDADE DE SEU TERRITÓRIO

Apesar da aceleração na entrega dos títulos nos últimos meses, existe uma longa burocracia por trás da regularização. O trabalho exige um estudo histórico dos primeiros documentos jurídicos utilizados na formação do Brasil Colonial, como as cartas de Sesmarias – documentos utilizados pelas autoridades da época para doar terras aos donatários e governadores. O processo, chamado de “arrecadação de terras”, consiste em um inventário de tudo o que foi doado sem registro para que se possa realizar a formalização até a entrega dos títulos às comunidades atuais.

O estudo é feito em parceria com a Universidade Federal do Piauí (UFPI) – a instituição realiza um processo chamado “prova negativo” – ação que comprova não haver movimentação de documentos sob aquele espaço. A partir desse processo, é constatado que os locais sempre estiveram ocupados pelos seus ancestrais, impedindo a ação de grileiros com documentos falsos alegando propriedade sobre aas terras ocupadas.

Todas as etapas consistem em regularização, incluindo vistoria, georreferenciamento das terras, cadastro das famílias, certificação do imóvel e análises sociais e jurídicas. Chico Lucas, Diretor Geral de Reforma e Regularização Fundiária do Interpi, ressalta que um site está sendo desenvolvido junto à academia com o intuito de disponibilizar a digitalização dos documentos encontrados no Arquivo Público do Piauí. Isso deve facilitar a busca do Interpi no processo de titulação, e também acelerar o trabalho dos pesquisadores. O site deve comportar documentos históricos do período Colonial, Imperial e Primeira República.

Desenvolvimento para quem?

Em grande parte do Piauí, a soja cresce como principal produto do agronegócio. O item é vendido para fora do país e utilizado para alimentar o gado – demandando um vasto território para plantação, que estimula o avanço de fazendas e colheitas em locais que moram comunidades tradicionais e quilombolas.

O diretor do Interpi explica que a maioria desses locais são de difícil acesso em termos geográficos. Além disso, não apenas no Piauí, mas em Mato Grosso, Roraima, Tocantins, Oeste da Bahia e sudoeste do Maranhão, essas áreas passam a ter um repentino valor econômico. O perímetro, conhecido como MATOPIBA, faz uma área de expansão de uma das maiores fronteiras agrícolas do país. 

“Aqui, prefere-se vender alimento para animal e vender para o exterior, para lucrar mais”, ressalta Chico Lucas. “Isso é uma noção de desenvolvimento do agro, mas quem se desenvolve?”, questiona.

Essa ideia de desenvolvimento vai na contramão do estilo de vida criado dentro desses territórios. É o que afirma o líder do Quilombo Custaneira, localizado no município de Paquetá (distante a 255km de Teresina), Arnaldo Lima. Para Naldinho – como é conhecido – a disputa pelos territórios das comunidades tradicionais e quilombolas visa apenas o desenvolvimento financeiro dos grandes latifundiários, não do bem-estar ou preservação da natureza e das famílias que vivem nas comunidades.

Segundo Naldinho, as famílias quilombolas estão há anos ocupando essas terras e possuem um pertencimento ancestral fato que não é respeitado pelo sistema do agronegócio. “Querem fazer com que a gente vá para as favelas das grandes cidades e que a gente vá embora ignorando uma dívida histórica que esse país tem com o povo negro”, destaca o líder. Naldinho acredita que, além do reconhecimento das terras através da titulação, direitos básicos como educação, saúde e saneamento poderiam ser sanados. 

Defender a terra é defender a tradição

No Brasil, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) são os órgãos que defendem os quilombolas e os povos indígenas em âmbito nacional. No Piauí há uma lei estadual que protege o território dos povos tradicionais, como foi o caso da Comunidade do Salto I e Salto II, primeira comunidade ribeirinha titulada no estado – mesmo após o reconhecimento, líderes e moradores continuaram a receber ataques e intimidações. 


Entrega de Titulo Coletivo comunidade quilombola Riacho Fundo - Isaías Coelho

Segundo o Interpi, poucos estados brasileiros possuem essa legislação protetiva, porém, agrupamentos como os de vaqueiros, quebradeiras de coco, ciganos e fechos de pasto estão se assentando e sendo reconhecidos. O direito à propriedade garante que se possa “usar, gozar e dispor”, mas os Títulos de Terra não permitem a venda, uma vez que pessoas com algum interesse econômico poderiam comprar as terras dos titulados e fracionar o território. 

Quando há invasão ilegal por parte de fazendeiros e grileiros, a Defensoria Pública e Ministério Público são acionados para garantir sua proteção. No caso das Comunidades do Salto I e II, que receberam ameaças de grileiros, uma liminar judicial foi expedida para proteger a população

Além disso, a partir do projeto “Vozes do Quilombo”, a Defensoria Pública luta para garantir a proteção das comunidades quilombolas. Segundo Karla Andrade, defensora pública e responsável pelo projeto, dentre as demandas repassadas, a maioria  são relacionadas à terra.

Outra motivação que originou a criação do projeto diz respeito ao pequeno quantitativo de defensores públicos no estado e as dificuldades de locomoção dos moradores da comunidade até as sedes da defensoria. Para evitar agendamentos e espera, o projeto surge como alternativa para atender demandas coletivas dos quilombos. “Eles têm demandas urgentes, por isso a necessidade de um mecanismo da justiça que possa acessá-los de forma mais rápida”, destaca Karla.

Dentro dos quilombos, além do racismo que enfrentam, estigmas culturalmente repassados atingem esses povos. “Na verdade, a sociedade não pausa para ouvir os quilombos”, frisa Karla. “No dia em que parar vão entender que eles têm muito a nos ensinar”.


Autoria: Vitória Pilar

Publicado em: https://oestadodopiaui.com/da-terra-ao-reconhecimento/

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